Saturday, March 31, 2007

RC: Brincando de morrer

A vida de um sonho é complicada quando você tira ele do armário. Apenas com este conto que apresento a vocês, garanto que o meu sonho perdeu alguns quilos devido ao esforço. O trabalho foi considerável, ainda mais pela intervenção musical que me fez mudar o destino original da personagem principal do conto. Algum dia, todos esses contos com RC estarão em um bonito livro, que vocês poderão ler nas suas próprias mãos ao invés de online. Sei que pedir comentários não fará algumas pessoas que aqui passam comentarem, mas mesmo assim, peço que comentem. E aproveitem! :)




RC: Brincando de morrer


Chegamos perto do final
Eu fico assim porque não sei me conter
Só conheço uma luz
Não vejo lógica no fim
Odeio ter que esperar para saber
O que é tão claro pois
Quebraram o relógio do universo
E eu não vou ficar para trás
Trocaram o errado pelo certo
Cem anos não me bastam mais
Mesmo assim, não fique aí parado, meu rapaz

Relógio do Universo, Lunática



Acabava mais uma manhã de aulas. Bandos e bandos de garotas saíam das salas, radiantes, com sorrisos alegremente estampada nos seus rostos. Conversavam sobre o conteúdo recém-aprendido, e os planos para o fim de semana ao lado dos namorados. Eram tão felizes que a felicidade delas parecia resplandecer ao Sol.
Porém, nem todos estavam brilhando naquele fim de manhã de sexta-feira. Será que é obrigação das pessoas ter felicidades que resplandecem ao Sol? Será que, apenas tendo isso, você é normal e pronto?
Eram essas perguntas que passavam na cabeça de uma menina isolada que, de longe, observava as colegas como quem via um programa na televisão. Ela abaixa a cabeça e olha para o visor do celular, deixando os longos cabelos loiros pendendo ao lado do rosto. Não havia nem ligações nem mensagens. Para que diabos ela tinha aquele maldito aparelho, que não recebia nem mensagens nem ligações? Se ela fosse alguém com mais determinação, ela atiraria o celular longe naquele mesmo instante. Mas ela não fez nada. Era geralmente o que ela fazia: nada. Os outros é que faziam, eles é que normalmente iam embora da vida dela.
A manhã que então findava era a de um dia de outono, que então deixava o pátio do campus cheio de folhas. Ela podia sentir o vento mexendo no seu cabelo e batendo contra seu corpo magro. Quantos quilos ela tinha perdido desde que toda essa história começara? Desde que ela entrara em queda-livre? Não há como saber o tamanho do estrago até se chegar ao fundo.
De repente, como um tiro em meio ao silêncio sem palavras, o celular tocou. Era o último resquício de família que ela ainda tinha: sua mãe.
- Oi, mãe. - disse ela, levando o aparelho ao ouvido enquanto lutava contra o vento batendo nos seus cabelos. - pode falar, estou ouvindo.
- Carolina, onde você está? - A voz da mãe dela ainda soava excessivamente preocupada. Haviam passado menos de quinze minutos do fim da aula, onde ela poderia estar? Mas ela mal levou isso em consideração, deveria ser uma preocupação natural para uma mãe que já perdeu um filho.
- Acabei de sair da aula, mãe. Hoje só vou ver aquelas aulas e depois vou pra casa, acho que antes das cinco eu chego.
A mãe dela disse "Ah, tá" e desligou. Aparentemente, a necessidade de segurança diária dela já havia sido suprida. Carolina começou a caminhar afastando-se do prédio de aulas, as folhas levadas pelo vento batendo nas suas costas. O cabelo, sendo levado pelo vento o tempo todo, a incomodava. Ela era uma estudante de Pedagogia, que dava aulas particulares para crianças no seu tempo livre. No entanto, quem a tivesse visto no começo da faculdade poderia até mesmo não a reconhecer agora. Com vinte e um anos, cerca de uns vinte quilos e incontáveis sorrisos a menos, Carolina vagava pelo campus afora, sem amigos. Enquanto caminhava para fora do campus, revivia as memórias dos útimos acontecimentos.
Talvez o mesmo vento, que fazia seus cabelos esvoaçarem, ajudasse a levar as pessoas embora. Ela lembrou-se do dia que, não muito tempo depois de ela ter passado no vestibular, ela chegou em casa para receber a notícia a respeito do seu irmão. Ventava um pouco no dia que ela soube que ele tinha se ido para sempre. Aquele rapaz alto, loiro, de ombros largos, que tanta segurança lhe passava, não existia mais. Mal havia Carolina se acostumado a ter passado de filha mais nova para filha única quando mais uma pessoa havia se ido da casa. Enquanto ela estava na aula, ela perdera uma daquelas cenas que fazem a rua parar para olhar, e que teve como resultado o fato de que, ao chegar para o almoço, apenas sua mãe estava em casa. Seu pai havia se ido também.
Qual era o problema das pessoas, que se iam assim, tão facilmente? Tão simplesmente? Deixar de existir é tão simples? Ela própria pensava em desistir, em sumir também. Parecia ser tão fácil!


Carolina marcava suas aulas por telefone, então ela acabava por conhecer seus alunos apenas no momento da aula mesmo. Ela parou em frente do prédio no qual estaria seu aluno de hoje. Era um desses prédios históricos. Um prédio velho. Desses que, quando você vê, você fica em dúvida se eles ainda são habitados normalmente ou se estão ali apenas para que as pessoas lembrem do passado ao olhar para eles. Ainda parada em frente ao prédio, apenas seus olhos azuis se moviam, observando este e aquele detalhe da construção. Prédios antigos faziam com que ela sentisse cheiro de morte. Ela torceu o nariz e tocou a campainha.
Quem abriu a porta foi um sorridente garoto de cabelos ainda mais loiros do que os de Carolina. Ah, não, mais sorrisos, pensou ela. Por um instante, ela desejou desaparecer, evaporar no ar, enquanto ouvia a vozinha feliz do garoto lhe dirigindo a palavra.
O garotinho loiro, que não deveria ter mais do que seis anos de idade e usava uma roupa parecida com um pijama, então a conduzia ela pela casa, cheia de corredores que dobravam aqui e ali, parecendo um labirinto. Um labirinto agoniante. Haviam nas paredes lindos quadros e o chão era forrado com belos tapetes bordados. Mas ainda era um labirinto agoniante. O garotinho falava sem parar, enquanto ela já havia desligado do que ele dizia, e apenas o seguia automaticamente. Os olhos dela estavam presos ao estranho cenário que aquela casa formava. Dentro daquela casa, ela sentia-se em algum lugar do século dezoito. Os móveis tinham aparência de móveis antigos, mas todos reluziam, mostrando que eram novos ainda. Estava difícil de entender o que estava acontecendo.
Até que eles chegaram à sala. Era uma sala ampla, e com poucos móveis. Encalavrada em um canto da sala, havia uma mesinha, com cadernos e livros. E na parede, de frente para a porta, um quadro enorme, que parecia ser um retrato do próprio menino. Carolina caminhou lentamente até a frente do quadro, os braços pendendo soltos ao longo do corpo, sua pasta estilo carteiro batendo na sua perna. Parou em frente a ele, e apenas então, ela se deteve a olhar os detalhes. A roupa que o menino usava no quadro soava a ela como algum tipo de fantasia, com babados e rendas. Parecia saído de algum lugar incerto do passado, algo semelhante às ilustrações representando o personagem principal do livro O Pequeno Príncipe, talvez.Apesar da diferença óbvia de idade, alguma coisa nele fazia com que ela pensasse no irmão mais velho que ela perdera. Os olhos dele eram de um verde-água, água de um mar calmo, mas que poderia atacar com ondas enormes a qualquer instante. A qualquer instante mesmo.
- Não se mexa! - o garoto gritou, e Carolina virou-se na direção dele, que estava perto da porta, atrás dela. Ela ouviu o som de algo movendo-se contra o vento, e de pequenos objetos balançando. O teto estava descendo? Não, era o lustre que estava caindo. Indo exatamente na direção dela. Ela quis correr. Quis gritar. Mas não fez nada disso. Era geralmente o que ela fazia: nada. O corpo dela caiu ao chão, com os cabelos loiros esparramados, empapados de sangue, mesmo sangue que formou uma poça no tapete ao redor dela.



Ela abriu os olhos. Olhou para o próprio corpo, nada aparentava estar faltando. No entanto, havia sangue nas suas roupas. Passou a mão nos cabelos. Estavam cheios de sangue. Mas não havia corte, não havia ferimento. Com os olhos parados, olhando para nada, ela tentava entender o que estava acontecendo.
Ela olhou em volta. Aparentemente, ela estava em algum tipo de sala. Escura. A única fonte de luz na sala era algo que de longe parecia um espelho, localizado às costas dela. Com que por instinto, ela seguiu a luz e aproximou-se do tal objeto. Tocou nele, e sentiu que ele era gelado, semelhante a vidro. Na verdade, parecia mais uma janela. No entanto, ao olhá-lo de perto com os olhos fixos nele, ela percebeu que o que ela estava vendo era nada mais nada menos do que o enorme quadro que estava na sala do menino. Era como se ela estivesse vendo o quadro pelo avesso. No entanto, o garoto, que antes posava sozinho imponente no meio do quadro, agora tinha uma companhia retratada nele. Uma garotinha loira, de longos cabelos lisos escorridos, de cerca de seis anos de idade, trajada num estilo similar ao do garoto, e com uma cruz na mão. Parecia incrivelmente com ela própria. Ela tentava lembrar se o garoto estava já anteriormente segurando uma cruz, mas ela realmente não conseguia lembrar disso.
A pintura que antes estendia-se na parede agora parecia ter sido feita em vidro mesmo, pois era possível para ela enxergar a sala na qual ela estivera a poucos intantes atrás apenas olhando para "o outro lado" da pintura. E lá, no meio da sala, era possível ver seu corpo estendido. A garota soltou um grito de admiração e levou as duas mãos à boca ao ver seu próprio corpo estirado no chão da sala, deformado com o impacto do lustre sobre ele.
- Você conseguiu - disse uma voz atrás dela.
Era o garoto. Sua voz soava agora um pouco grave demais para ser uma voz de criança, mas era ele mesmo.
- Você me matou! - exclamou ela, virando-se para ele bruscamente, com o seu espanto estampado claramente na sua voz.
- E você não queria morrer? Não era isso que você queria? - respondeu ele, sério, olhando ela de braços cruzados.
A resposta desarmou ela, que baixou os braços e ficou parada, olhando para ele. Ele seguia encarando-a, sem sorrir. Sim, era verdade, ela dizia com frequência que queria morrer. Mas ver seu corpo inerte e desmantelado não havia passado pela sua mente.
- Eu só...queria...
Ela queria fugir. Fugir de tudo que estava dando errado. Fugir de tudo que acontecia de maneira imprevista, de um jeito que ela não sabia o que esperar. Fugir de tudo que ela não sabia controlar.
- Eu lhe dei o que você queria - ele ainda a encarava, quase com cara de raiva. - e agora ninguém mais vai fugir. Ninguém mais vai magoar você.
Ela olhava para ele com uma expressão apavorada estampada no rosto, os olhos lacrimejantes. Queria fazer alguma coisa, mas não sabia o quê.
- Olha - disse ela, se esforçando para formular seus pensamentos o mais claramente possível - isso é um mal-entendido, eu quero voltar.
- Para quê? - disse ele, de braços cruzados, impassível - Para continuar sendo abandonada?
Ela não via resposta para isso. Ela achava que ele tinha razão, então como contrariar?
- Tem várias coisas que eu ainda não fiz na vida... - chutou ela. Foi o que lhe viera à mente na hora.
- Como por exemplo....?
Ela girou os olhos. Olhou em volta. Olhou para cima, como se isso a fizesse entrar em contato com os próprios pensamentos. De repente, com a rapidez de uma luz que é acendida na escuridão, uma idéia lhe ocorre:
- Eu nunca amei ninguém!
A surpresa com as palavras dela ficou evidente no rosto dele.
- Nunca amou ninguém? - repetiu ele, como se não acreditasse.
- É! Você sabe, eu nunca namorei ou algo assim...
A vida de Carolina no departamento amoroso era até então uma coleção de declarações não-correspondidas e de amores platônicos, nenhuma chance de relacionamento real. Se alguém dissesse a ela poucas horas atrás que ela usaria isso para salvar a própria vida, ela provavelmente teria olhado para a pessoa com sarcasmo e dado risada.
Ele ficou parado, olhando para ela, sem emitir um único som. Permaneceu assim por um tempo, até que por fim ele falou:
- Depois de tudo que você passou, depois de tudo que você viu...você ainda quer tentar isso, só para ser abandonada de novo?
Ela tentava juntar forças para contra-argumentar. Ela por fim conseguiu dizer:
- Bem...se eu morrer, eu não vou nem ter como tentar, né? - disse ela, tentando sorrir timidamente.
- Você passa o tempo todo pedindo uma coisa e, quando a ganha, diz que não quer mais...depois não me venha reclamar! - disse ele, com raiva.
Mal ele terminou de pronunciar essas palavras e a luz que provinha do quadro se apagou. A sala ficou totalmente escura. É o fim em definitivo, ela pensou. Ficaria na morte para sempre. O primeiro pensamento que lhe ocorreu foi sentar em um canto e chorar. Ela, porém, logo sacudiu a cabeça, balançando para os lados os longos cabelos loiros:
- Sentada não chegarei a lugar nenhum.
Em uma escuridão na qual não se via nada, Carolina estendeu os braços para a frente e saiu andando, sem saber para onde, sem saber esperando o que encontrar.
Ela não saberia dizer quanto tempo ela passou caminhando no escuro. Ela não saberia dizer quantos milhares de vezes ela pensou em desistir. Mas ela seguiu caminhando. E, por fim, bateu em alguma coisa semelhante a uma parede, que tinha textura de madeira. Não, não era uma parede: era uma porta. Tinha uma maçaneta, gelada e arredondada. Girando a maçaneta pode-se ouvir o gemido da porta ao ser aberta e logo uma luz forte e intensa cobriu os olhos azuis dela: ela estava na rua de novo.
- Acho que eu vou sair da comunidade "Eu nunca morri na minha vida" - disse ela, e começou a caminhar no caminho para casa.

1 comment:

Má B. said...

Esperta, Carolina.

Alguém q aparentava não ter coragem nenhuma, que pedira pra morrer tantas vezes,
mas que no fundo sabe que a vida é exatamente aquilo que a gente escolhe pra gente. E nem precisamos de um menino de olhos verdes de calmos para nos dar isso, é algo que nos mesma fazemos. A não ser que...
tenhamos coragem para seguir em frente...e olhar as coisas boas com esperança de uma vida melhor.