Friday, May 25, 2007

RC: Unilateral

- Cada dia estou me enchendo mais!
Denise era ruiva. Não dessas ruivas artificiais, com cabelos vemelhos. Uma ruiva de longos cabelos lisos laranjas, do tipo que normalmente pedem sardas como acompanhamento. Mas nem isso ela tinha.
- Eu acho que vou te internar!
Denise ouvia os berros, e mal murmurava em resposta. Era difícil ouvir a sua voz. O que ela queria era pedir ajuda para a sua mãe, sentada ao seu lado no ônibus. Mas tudo o que recebia em resposta era coisas do tipo:
- Tu gosta de incomodar as pessoas, né? Só pode ser isso!
O ônibus inteiro ouvia a mãe dela berrando, e alguns olhavam fazendo cara feia. Eu, ocupando um dos lugares perto de uma das janelas do ônibus, só ouvia um doce e tímido sussurro como resposta.
- Tu vai fazer a prova sim!
Senti vontade de interferir e dizer: não, minha senhora, não é da prova que Denise quer fugir.Ela soluçava baixinho, os dedos tímidos cobertos por uma luva cor-der-rosa movendo-se freneticamente. Na parte de cima da luva, uma enorme borboleta lilás. Quem dera Denise do nada pudesse bater asas e voar, como uma delas. Ela se sentiria bem demais naquele instante se pudesse fazer isso.
- Pessoa cega é quem não enxerga!
Cega, ela? Não, Denise só havia trocado os óculos naquele dia. E o que mais doía na sua alma, mais do que o frio entrando pela janela do ônibus, era o fato de que Daniel não gostasse dos seus novos óculos. Ele, Daniel, era loiro, sarado e, além de ser o alvo da paixão de Denise, era o cara mais popular da sala.
Denise mexia os dedos nervosamente, pensando nisso ao som dos berros da mãe. Ela queria ajuda, ajuda desesperada. O que se faz quando se tem 14 anos e se está apaixonada? Mas a mãe dela não a ajudava, e só pensava em uma coisa:
- Tu não pode rodar esse ano!
- Mãe, eu nunca rodei! - disse ela, como que por milagre fazendo sua voz audível. A voz de Denise era linda. Mas a mãe a ignorava, e seguia gastando sua verborréia toda, adiantando vários anos na vida da menina:
- Tu precisa entrar em uma boa faculdade! Olha para o Davi, consegue entrar em qualquer uma!
O Davi. O inoxidável irmão de Denise, cujo prazo de validade nunca vencia. Davi era perfeito em tudo, e ela era a irmã mais nova que nasceu de araque.
Se Denise pudesse de verdade saber das coisas, ela saberia que Davi, na verdade, não era tão perfeito assim. Mas, se ela pudesse saber das coisas, como eu sabia naquele instante, provavelmente ela escolheria saber outras coisas. Ela poderia escolher saber, por exemplo, que ela estaria livre para fazer sua prova de literatura tranquilamente, porque Daniel não estaria nem aí para ela. Daniel estava ficando com Alice, a menina mais cobiçada da sala. Na verdade, Alice era uma burra loira e sem peito que viraria mãe solteira em algum lugar nos próximos dois anos futuros enquanto Daniel morreria sozinho em uma cama de hospital com AIDS.
Enquanto isso não acontecia, Alice tinha um séquito de seguidores na sala. Um deles, chamado Calos, era o fiel escudeiro de Denise. Carlos era alto, magro e desengonçado, e era a dupla de Denise para a prova de literatura de hoje. Ele que havia dado o chaveiro de ursinho que balançava pendurado no fichário de dálmata de Denise. Em uns dez anos, Carlos seria um engenheiro de sucesso, formado nauela universidade pública famosa, e em uns quinze anos, ele e Denise estariam casados e criando umlindo casal de crianças. Por hora, os dois limitavam-se a sofrer juntos por migalhas de atenção de quem realmente não os merecia.
Nesse tempo todo que eu estive falando para vocês, a mãe de Denise seguiu praguejando feito uma louca. E foi nesse instante que eu desejei matar Denise. Desejei a ela uma morte lenta, com muito sofrimento. Não, não por causa dela. Não queria ver aquela adorável ruivinha de uniforme azul-escuro sofrer. Queria, sim, que a mãe dela sofresse. Que a mãe dela sentisse muita dor e que, ao ver a filha no leito de morte dela, pedisse perdão pelas ásperas palavras proferidas. Queria que a mãe dela entendesse que existem seres do sexo feminino que amam, tenham eles 14, 24 ou 34 anos. Por isso, só por isso, eu estava desejando a morte de Denise naquele momento.
A senhora sentada ao meu lado me pergunta se o ônibus vai até o Mercado. Não,snehora, este ônibus vai só atéo terminal Rui Barbosa, no Centro. Logo o ônibus pára em frente a um tradicional colégio de Porto Alegre e Denise desce.A mãe dela segue no ônibus, e começa a protestar com a senhora ao lado sobre como a juventude de hoje está perdida.
Denise olha para a frente do colégio e, de longe, reconhece Daniel parado, de pé em frente à porta. Em uma infundada esperança de que ele estivesse ali por causa dela, Denise atravessa a rua correndo, apenas para ser atingida em cheio pela Pajero do pai de Alice. Tudo acontece em uma fração de segundo, e algumas pessoas ainda dentro do ônibus no qual Denise estivera chegam a perceber o burburinho de alunos no meio da rua. Carlos, tentando abrir caminho em meio à multidão de alunos que se amontoou ao redor de Denise, vira para trás e lança ao ônibus um olhar de profunda raiva, do fundo dos seus olhos castanhos. Não, Carlos, eu não matei Denise.