Friday, December 29, 2006

"Solitário"

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos,um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí,como quem tudo repele,
-Velho caixão a carregar detroços-

Levando apenas na tumbal carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!


O ano era 2004. A cidade, Porto Alegre. A prova, a de recuperação para a cadeira de Literatura Brasileira. Verão, aulas atrasadas por causa da greve. Meia dúzia de gatos pingados fazendo a prova. E lá estava a aluna, com seu Eu tamanho de bolso, que não precisava de recuperação e só queria aumentar sua nota. Mas lá estava também a professora, loira, espalhafatosa e com sua paixão por Os Sertões, e que não estava impressionada com o gesto Miyazawa da aluna: outro aluno da mesma turma estava fazendo a prova tendo abdicado da possibilidade de ter a nota aumentada intencionalmente. Oh, isso sim era nobre! Muito mais Miyazawa do que o gesto dela. E isso a deixou com muita raiva. Já havia pego esse mesmo colega olhando para ela no meio da aula, enquanto a professora falava de Philippe Àries e seus quadros de criancinhas mortas. Como ele, um aluno quietinho, que até óculos usava, ousava ser mais Miyazawa do que ela? Ah, ele merecia sofrer por isso. Fazer sofrer cada fiozinho da cabelo loiro daquela cabeça. Ela estava com vontade de bater nele. Ali mesmo. E bater muito. Oras, ele precisava de uma lição! E isso não seria nada que um shibarizinho básico não resolvesse!
"E sobre qual escritor você vai fazer a prova?" pergunta a professora.
Ah, é, a professora. A professora, magrinha, fiasquenta, ela precisava saber sobre o que cada um deles iria falar.
"Augusto dos Anjos!" responde ela, e apesar de não dizer nada, a professora não consegue disfarçar a estranheza. A aluna consegue ler no rosto dela o espanto, e o espanto diz: Augusto dos Anjos é poesia para adolescentes revoltados, não para estudantes sérios de Letras. Mas logo a expressão de estranheza se vai: oras, ela está diante da aluna que fez trabalhos sobre livros contendo homossexualismo descarado, mulheres vestidas de homem e professoras "comendo" alunos de 15 anos. O que custa acrescentar alguns cadáveres em decomposição nessa lista? Ela, pelo jeito, gostava de coisas polêmicas e pronto. Não foi ela aquela aluna que arranjou fama de briguenta ao bater boca com uma professora no primeiro dia de aula? Que disse que tinha literatura até no sobrenome ou algo assim...é, foi ela mesma. Lembrando desse fato, a professora deixou-a quieta, fazendo sua prova sobre poemas mórbidos e foi babar mais um pouco em cima do aluno-que-não-queria-aumentar-sua-nota.


(Nota da autora: com essa mesma professora, a aluna em questão apresentou trabalhos sobre O Ateneu, Grande Sertão: Veredas e Amar, verbo intransitivo: homossexualismo descarado, mulheres vestidas de homem e professoras "comendo" alunos de 15 anos. E não tirou a nota máxima em nenhum deles.)


Mal sabia a professora o que a aluna estava passando fora da faculdade. Seus pais estavam se separando, ela havia deixado a cidade na qual morara por 20 anos para se mudar para uma cidade-semi desconhecida, havia perdido contato com todos os amigos que tinha pela Internet e seu namoro estava ruindo. O que a professora queria, que ela estivesse escrevendo cartas de amor? Provavelmente sim, a julgar pelo fato de que ela era apenas mais uma guria da Letras. Mais uma futura professorinha. Em uma sala com setenta gurias, que falta faz uma a mais ou a menos? É tão difícil notar que ninguém percebeu quando a mesma sumiu da faculdade por mais de um ano. Ou ao menos ninguém aparentou perceber. Ninguém se mexeu para ir atrás dela, telefonar, dar algum sinal de vida, nem que fosse para cobrar entrega de trabalhos.

Mas ano que vem ela estará de novo, de volta à faculdade. O colega loiro de gesto Miyazawa provavelmente já se formou, ou estará às beiras de se formar. Não dá nada, haverão outros shibaris pela frente.

Feliz 2007 a todos! \o/



~+~

Post Escrito ao som de:

Helloween - Laudate Dominum
MOVE - Let's Rock!! [Album Edit]
ZONE - Yume no Kakera ~Album Version


~+~


Este post não teria sido escrito sem a importante colaboração dos sacos de gelo (ou vocês se esqueceram de que a autora ainda está machucada?). Obrigada, sacos de gelo! Todos nós amamos vocês!

Monday, December 18, 2006

Marílias, Dinamenes, Miyazawas ...e todas pelo amor!

Hoje estava eu no consultório médico, esperando para ser atendida, lendo Marília de Dirceu e com dor nos braços apenas do "esforço" ter de segurar o livro na altura dos olhos. E realmente, Tomás Antônio Gonzaga escreve pra caramba, domina 500 técnicas diferentes de métrica ao longo das liras. Deve ter levado um tempo danado para fazer isso. E, se ele fez isso, é porque Marília ele não tinha. Isso faz sentido? Até faz, mas não quer dizer que verdade seja. E para isso, ilustro-lhes falando do meu tatatatatatataravô e exemplo-mor em termos de poesia, Luís Vaz de Camões.

Quem olha as nobres ilustrações representando Camões deve imaginá-lo como um ricaço, que não tinha nada mais a fazer da vida e decidiu escrever um poema épico. Que nada! Camões era de uma família de ex-ricos, um boêmio que vivia arranjando briga, se ferrando no emprego (era funcionário público, o coitado) e sempre perdendo as gurias no fim das contas.

A musa-mor de Camões foi a loirinha Beatriz. Mas, talvez devido à influência das loiras na minha vida, sempre simpatizei mais com a Dinamene. E talvez pelo fato de Camões tê-la conhecido em Macau, sempre imagino-a com feições orientais. Uma chinesinha andando em roda de Camões reclamando do excesso de tempo que ele dedicava àquele monte de rimas ao invés de dar atenção para ela - qualquer semelhança com Namoradas vs. Playstation é mera coincidência?

Até que surge o naufrágio nas águas do Rio Mekong. Dinamene morre e vira poema. Aliás, poemas:

Ah! minha Dinamene! Assi deixaste
quem não deixara nunca de querer-te?
Ah! Ninfa minha! Já não posso ver-te,
tão asinha esta vida desprezaste!

Como já para sempre te apartaste
de quem tão longe estava de perder-te?
Puderam estas ondas defender-te,
que não visses quem tanto magoaste?

Nem falar-te somente a dura morte
me deixou, que tão cedo o negro manto
em teus olhos deitado consentiste!

Ó mar, ó Céu, ó minha escura sorte!
Que pena sentirei, que valha tanto,
que inda tenho por pouco viver triste?


Mas Camões também estava no barco. E quase morreu. E para que ele dirigiu suas preocupações? Para o salvamento....dos manuscritos de Os Lusíadas. Dinamene estava certa, no fim das contas. E Camões devia saber disso. Mas o que seria dele sem ter feito Os Lusíadas? Ele foi racional, colocou o "lado profissional" em primeiro lugar, sabendo do que isso faria por Portugal e pela então obscura língua portuguesa. Iria Dinamene querer um cara fracassado que não fez nada de muito legal na vida? Lógico que na cabecinha masculina de Camões a resposta seria não. É verdade que, assim como os poemas, é conhecido o fora que ele deu ao não salvá-la. Mas, em mais uma brilhante citação da minha alter-ego mangática Miyazawa Yukino, a guria doidinha de Karekano, existem fatos que só conseguimos enxergar porque não deram certo. E agora, uns 600 anos depois, sejam eles espíritos iluminados ou estejam eles no Céu, ele pode olhar para ela e dizer: "Olha, Dinamene, eu sou importante! Eu fiz algo inesquecível!" E me agrada a idéia de que eles estejam usufruindo algum tipo de poética existência etérea juntos. Mais servira, se não fora para tão longo amor tão curta a vida! :D

Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida, descontente,
repousa lá no Céu eternamente
e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueça daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
alguma cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te
quão cedo de meus olhos te levou.



~+~


Parte audível do dia:

Coheed & Cambria - Time Consumer
Junko Iwao & Tomoeda Shogakkou Chorus - Yoru no Uta, Christmas Version
Yumi Takada - Fun Fun [Karekano OST]
Taking Back Sunday - Summer Stars

Parte legível do dia:

Marília de Dirceu
Volume três de Karekano

Post escrito ao som de:

Yumi Takada - Fun Fun [Karekano OST]