Sunday, October 29, 2006

Páginas Amarelas

"Mas o que eu vou fazer uma noite inteira sem falar com ninguém?"
"Leia", ele respondeu. "Poesia. Tem uma ampla gama de escritores que você pode ler."
O desafio estava lançado. E eu, como canceriana coração-mole, libriana carente e virginiana metódica, aceitei. Apenas a sensação de que eu estava fazendo isso para agradar alguém é que teimava em não sumir.
Estou sozinha em casa. Com música tocando no quarto, vou para a sala e e fico parada, olhando para a estante. A mesma estante que já foi acusada por um boyzinho pegador de ter mais livros do que a Biblioteca Municipal. Exagero óbvio.
Tem duas coisas que não me abandonam jamais: a vontade de escrever após fuçar em livros e a vontade de desenhar após ler mangás.
Encaro a estante de novo: está totalmente bagunçada. Livros didáticos, literatura, mangás, gibis, fitas de vídeo e parte da minha reputação de nerd se acumulam nela. Dá vontade de arrumar a estante. Separar livros por cor,tamanho autor...nhá.
Procuro meu livro de sonetos de Camões. Aquele, com um quadro de Picasso na capa. Só agora percebi que as páginas dele já estão amarelas. É engraçado ler sonetos ouvindo música, a mesma parece que escorre entre as estrofes, escorregando de cima a baixo da página, indo não se sabe para onde: Mais servira, se não fora para tão longo amor curta a vida e um solo de bateria.
Começo a separar os livros por autores. E não, eu não li todos os livros que estão na estante. Das tentativas da minha mãe para me comprar livros, restam coisas como dois exemplares iguais de Escrava Isaura. Das tentativas do meu pai, restam livros como Uma história de luta pelo salário mínimo. O resto é meu.
Prosa? Sim, com gelo, açúcar e laranjas. Jostein Gaarder e a garota das laranjas. Eu li O Mundo de Sofia inteiro! E ninguém lê até a parte importante, morrem antes. Jostein Gaarder, três livros. Algum dia agarro esse cara em uma cena histérica, digo que sou fã dele e desmaio antes de ele autografar meu Através do Espelho.
Conan Doyle. Um, dois, três, sei lá quantos. É Sherlock Holmes à beça, e nenhum para mim. Nabokov e sua narrativa à la A Vaca e o Frango, na qual todos são feios. Poe e os contos que não me deixavam dormir depois de lê-los. Mas mãe, se Graciliano Ramos era tão bom, porque ele colocou acento no "secas" de Vidas Secas? Sítio do Pica-pau amarelo completo: mãããããe, Monteiro Lobato era racista! Um dicionário da japonês, Veríssimo, contos de Machado e o manual do convênio médico acerta em cheio meu pé.
Camões está em cima do sofá. Poesia? Claro. Com Rosas, Espumas e com Eu. Quer dizer,comigo. Drummond e a eterna repetição: um, dois, três, quatro! Amar se aprende amando...com cupins. Meu nome escrito no livro com uma mão ainda criança, de caneta cor-de-rosa e com um carimbo da Minnie do lado. A guriazinha que era orgulho da professora ao carregar consigo uma versão super-mega-reduzida de Os Lusíadas, enquanto o resto da classe nem sabia quem era Camões. Enfim, adiante:
Neruda: um, e a convicção de que poesia traduzida não desce redondo. Manuel Bandeira: um. Ué, cadê o outro? De certo foi-se embora para Pasárgada. Foi! Não foi! E se a foice foi-se, o martelo, mantê-lo para quê?
Um solo de guitarra. Augusto dos Anjos: um. A bateria marca profundissimamente a batida enquanto enquanto termos técnicos e formas químicas desfilam. Pessoas andam pela casa. Quintana? Sim, dois. Os fantasmas também sofrem de visões: somos nós. Será que as teias de aranha do sono navegam nas Espumas Flutuantes? Sei que o sono bate, e por causa dele deixo alguns genéricos para trás: "Clássicos da poesia brasileira" , com dedicatória daquela colega de faculdade que não fala mais comigo. Guitarra. Aquela colega, sabe. Baixo. Ah, é, e uma vez na vida eu ganhei um livro como presente de aniversário.
Faltam algumas coisas. Falta Garcia Marques, Caio Fernando Abreu, Fernando Pessoa, Cruz e Souza. Falta um solo de clarineta. Mas sono não falta. Releio a dedicatória, abro o livro dos Clássicos randomicamente, em uma página qualquer. Texto sorteado: primeira parte da lira um de Marília de Dirceu. Coincidência? Graças à minha estrela.

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